sexta-feira, 16 de setembro de 2011

O Armario hetero...

Não há dúvidas de que a sexualidade permeia boa parte da vida humana. Está presente nas conversas de bar, na literatura, nas propagandas, nas revistas, nas piadas, na moda e até nos púlpitos e altares, uma vez que a "moral sexual" é uma das preocupações hodiernas mais gritantes no entender de católicos, evangélicos e membros de um sem-número de outras religiões.
Apesar disso, freqüentemente nós, homossexuais, somos indagados sobre a necessidade que temos de assumir essa mesma sexualidade "todo o tempo". Muitos héteros e não-assumidos convictos (não me refiro, evidentemente, àqueles que estão em crise ou que não se assumem por motivos superiores à sua vontade) costumam dizer que "nossa vida privada não interessa a ninguém". É comum o argumento de que "nenhum homem (sic) precisa chegar e dizer sempre que é hétero. Por que um gay precisa dizer o tempo todo?".
Na verdade, essa discussão revela um profundo desconhecimento dos discursos sobre a sexualidade – discursos falados, escritos e imagéticos. Certamente a heterossexualidade, em nossa cultura, é reafirmada e ratificada o tempo todo: cada vez que uma propaganda de cerveja mostra o líqüido acompanhado por lindas mulheres e homens embasbacados por elas; cada vez que um casal homem-mulher tasca um beijo na rua sem ser incomodado; em cada capa das centenas de revistas que temos, das de fofocas às de noivas, passando pelas masculinas ao estilo da Playboy; cada vez que o programa do Luciano Huck faz o concurso de rainha do Carnaval ou apresenta quadros como "Namoro às escuras"; cada vez que uma moça apresenta o namorado à família e cada vez que uma igreja realiza uma cerimônia de casamento.
Em todos esses momentos e em centenas de outros que poderíamos enumerar, a heterossexualidade, tida como modelo social, é continuamente afirmada: nem tudo o que dizemos, dizemos por palavras. Não admira, portanto, que os héteros não precisem verbalizar que são héteros: a abundância de símbolos, modelos e sinais que dizem isso é tamanha que a "declaração formal" se torna absolutamente desnecessária.
Costumo afirmar, exatamente por isso, que a orientação sexual, ao menos a heterossexual, quase nunca é uma questão privada, mas pública: ver um homem e uma mulher na rua, salvo algumas exceções, como no caso de visualizarmos homens efeminados, naturalmente evoca para as pessoas a idéia de que o "homem gosta de mulher", e vice-versa.
Esse automatismo somente é quebrado quando o gay ou a lésbica se declara assim. E, afinal, o que é estar no armário, senão apresentar-se publicamente como heterossexual, fazendo uso do ambiente que essa abundância de símbolos propicia? Ninguém poderia permanecer no armário, pelo menos este armário que conhecemos, se não existisse tal automatismo.
É muito interessante recorrer a uma metáfora pela qual costumo ilustrar essa situação: nossa sociedade é constituída como uma loja de sapatos que vende apenas um número, o 40, por exemplo. Quem sentirá necessidade de ir até o vendedor e reclamar que os sapatos estão apertados e a loja tem de começar a vender outros números: quem calça 40 ou quem calça 42?
A resposta é óbvia, e, nessa metáfora, somos nós, homossexuais (ou bissexuais), os que calçamos 42. Os héteros, que calçam 40, estão confortáveis: não somente porque os sapatos lhes servem, mas também porque a propaganda da loja, os cartazes, o anúncio da revista e os vendedores já estão preparados para atendê-los com toda a variedade de modelos que possuem.
Os héteros não precisam "declarar" que são héteros, porque calçar os sapatos já é o bastante – a loja apenas espera que eles sirvam. Entretanto, é evidente que a propaganda, o anúncio, os vendedores ressaltam continuamente que a loja vende o número 40. Logo, pensar que os héteros não afirmam sua sexualidade é ser, no mínimo, inocente.
É interessante, inclusive, ver como o raciocínio que aqui apresento é capenga. Um homem hétero apresentar uma mulher como sua namorada é tido como absolutamente normal e corrente. Por que um homem gay apresentar outro homem como seu namorado é "expor a privacidade desnecessariamente, porque ninguém precisa saber o que fazemos entre quatro paredes"?
Os dois pesos e as duas medidas ficam claros, sendo que, em ambos os casos, existe invariavelmente uma afirmação da identidade e da orientação sexual que vem no pacote. A diferença é apenas que a primeira é aceita e a segunda não. Nesse aspecto, portanto, o que se esconde por trás do discurso da "privacidade homo" é simplesmente o preconceito (ou o autopreconceito), a dificuldade ou impossibilidade de se reconhecer a homossexualidade como legítima.
Alias, não legitimar a homossexualidade é também uma forma curiosa de afirmação hétero e, no que diz respeito à ala masculina, está relacionada a algo que denomino negação do corpo do homem. Defendo o conceito de que a masculinidade heterossexual é fortemente calcada nessa negação. A maneira com que ainda se educam os rapazes por aí leva o homem adulto a desprezar uma relação mais íntima e mais próxima com seu corpo e com os corpos de seus semelhantes – e isso implica em um desprezo da homossexualidade como ratificação da condição heterossexual.
Vamos tornar essas ligações mais claras: no "meio" heterossexual masculino, qualquer coisa é motivo para se evocar, de forma depreciativa, a homossexualidade (ou, mais corretamente, o "homossexualismo", posto que o foco nem sempre é a sexualidade global, mas tão-somente o ato genital entre dois homens). Homens héteros muitas vezes pensam mais em "veados" do que os próprios gays. Uma olhada mais "demorada", um movimento mais "suspeito", uma declaração "mal colocada" e pronto: lá está o pessoal chamando o outro de "veado" ou fazendo alusão a nádegas e similares.
Uma das vantagens de ser homem, gay e assumido é exatamente ficar imune a essas brincadeiras. Algumas são mesmo engraçadas, e é claro que até nós, gays, brincamos com o que diz respeito ao sexo e à homossexualidade - e amamos falar de homem. A relação, entretanto, é diferente, a começar pela intensidade. Ademais, em nosso caso, brincamos com algo que nos é próprio, o que nos nivela e reforça identidades e práticas, na medida em que todos fazem de fato aquilo que brincam fazer (ou a maior parte de tudo aquilo).
No caso dos héteros, porém, a chave não é afirmativa, mas negativa. Brinca-se chamando o outro de "veado", mas espera-se que este outro negue. Quanto mais bravo ele ficar (coisa que não existe propriamente entre nós, gays), mais intensa e "gostosa" torna-se a brincadeira. E por que esse tipo de coisa se relaciona a uma negação do corpo? Porque, social e culturalmente, homens héteros, no aspecto mais geral, não podem se tocar, não podem achar o outro bonito, não podem se abraçar intensamente e nem demonstrar carinho com mais fervor entre si - exceto em certas "ilhas", como, por exemplo, o estádio de futebol.
De resto, tudo é jogado no "lago proibido" do "homossexualismo" – e quem se atreve a questionar paga o preço, ainda que, felizmente, a modernidade tenha trazido por aí um número cada vez maior de homens héteros corajosos, que, não raramente, integram o "S" da sigla GLS. De qualquer forma, em muitos casos, substitui-se a falta de relação mais íntima com o corpo masculino pelas brincadeiras. Elas espelham não apenas uma carga de desprezo pelo "homossexualismo" que uma outra relação poderia desfazer, mas também uma reafirmação da heterossexualidade. Mais do que isso, elas também evidenciam um policiamento: homens héteros, salvo os corajosos a que me referi, passam boa parte do tempo provando e/ou dizendo para os outros que não são gays, ainda que tudo seja mascarado por "inocentes" piadinhas.
Dito isso, considero que eu, por meu temperamento, teria muita dificuldade, nesse aspecto, em ser hétero. Considero uma vantagem ser gay no sentido de poder beijar e abraçar meus amigos gays, sentar-me junto deles, deitar em seus colos. Isso, por si só, nada tem de interesse sexual imediato, pois nós, gays e assumidos, também o fazemos com as meninas. A diferença é que podemos aproveitar esse contato com ambos os corpos, o que nos ajuda a ter uma relação mais saudável e até mais plena com nossos próprios corpos.
Nesse ponto, devo esclarecer que este artigo não é uma apologia aos gays: claro que alguns (ou muitos?) de nós não têm esse tipo de consciência, e, além disso, percebo que o mesmo fenômeno se sucede às mulheres, sejam héteros, sejam lésbicas. Apesar de a educação dispensada a elas ter muito de ridícula (que o digam as feministas), nesse ponto tem um bom efeito. Mulheres fazem coisas incríveis juntas: vão ao banheiro em dupla, mostram novas estrias e celulites umas às outras, olham-se quando nuas, tocam-se, beijam-se e até arriscam-se a sair de mãos dadas, mesmo que sejam apenas boas amigas e heterossexuais. Não residiria justamente aí parte da "sensibilidade feminina"? No caso delas, fica ainda mais evidente que a questão que proponho não passa pelo contato com o objeto de desejo imediato.
Em um vestiário masculino, por sua vez, quem não olhar pro chão ou dispensar mais de alguns poucos segundos ao corpo do outro corre riscos. Se as mulheres mostram estrias novas no peito para suas amigas, um homem hétero é praticamente incapaz de mostrar o pênis para um amigo, a fim de que ele opine sobre uma ferida, por exemplo. Se as mulheres não vêem razão para se diminuírem depois de examinadas por um ginecologista, idas de um homem hétero a um urologista já despertam comentários jocosos – e que dirá um exame de toque retal, tão invasivo quanto um papanicolau, mas bem mais "atacado" do que este último?
Talvez por isso seja possível dizer que, com certa margem de segurança e descontando aqueles que carecem de informações básicas, mulheres de qualquer orientação e gays, em média, cuidam mais de seu corpo e têm maior conhecimento sobre ele do que os homens héteros, salvo algumas maravilhosas exceções.
É uma pena que esses homens, presos em sua própria masculinidade e tão seguros de si na ponta da pirâmide sócio-sexual, não percebam os males que a negação de seu próprio corpo lhes causa. As brincadeiras porque um gay elogiou a beleza de um deles ou porque um amigo deu uma reboladinha "supeita" são apenas um sintoma. Sinal de que algo, no fundo, não vai bem na sexualidade - mesmo que não se perceba. Talvez seja correto, afinal, dizer que os homens héteros também precisam romper com esse estado de coisas. Precisam sair do armário.

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